A ideologia da “liberdade” liberal
“Somos livres para fazer quando
temos o poder de fazer”
(Voltaire)
Os
defensores do liberalismo, que se apresentam como mensageiros da libertação da
humanidade, não se cansam de repetir que é necessário reduzir o Estado para
aumentar a liberdade dos indivíduos na sociedade. Mas, em que consiste essa
“liberdade”? Quais são os indivíduos que se tornam mais “livres” com o
liberalismo e quais são as conseqüências da “liberdade” liberal para o conjunto
da sociedade?
A idéia
predominante do liberalismo é de que através do livre mercado as
potencialidades humanas seriam, automaticamente, estimuladas em benefício de
uma coletividade. O grande inimigo da “liberdade” seriam as instituições
coletivas, como o Estado, por pretenderem regrar os indivíduos de acordo com um
interesse coletivo. Partindo do pressuposto de que a liberdade é marcada pela
ausência de condições e limites, uma liberdade negativa, portanto, o seu
exercício se daria através da predisposição natural de autodeterminação do
indivíduo.
A origem
dessa concepção de liberdade remonta ao período de ascenção da burguesia com o
advento do capitalismo e o fim do poder absolutista feudal. Para a burguesia,
progressista e revolucionária da época, o feudalismo, amparado na absolutização
da idéia de que a liberdade é uma dádiva divina, seria substituído pelo
predomínio da propriedade privada dos meios de produção e do mercado. É essa a
liberdade do indivíduo, centralmente reivindicada pelos liberais. Esse conceito
de liberdade, que passa a se confundir com a idéia de justiça liberal, foi
documentado por ocasião da Revolução Francesa, em 1791, como sendo o livre
arbítrio do indivíduo o “agir livremente sem interferir na liberdade do outro”.
Essa
proclamação da liberdade do indivíduo, repetida mundialmente pelo senso comum,
privatiza o próprio conceito de liberdade como sendo, simplesmente, derivada da
consciência individual do ser humano e prevê um único limite, o qual realmente
lhe interessa: a propriedade privada dos meios de produção como um direito
humano, que integra a Declaração Universal dos Direitos Humanos até hoje, em
seu artigo 17. A afirmação da importância da propriedade é tão enfática que
chega a ser vista como a própria origem da liberdade. Respeitando a divisa da propriedade
do outro, a livre concorrência se encarregaria de regrar as relações entre os
seres humanos. Ao Estado, caberia a função de zelar pelo cumprimento dos dogmas
centrais do liberalismo, concentrando-se em atividades como “educar” os
cidadãos para o exercício dos seus “direitos e deveres” e a repressão dos que
viessem a subverter a nova ordem estabelecida. Nesse contexto, entretanto, os
liberais revolucionários de outrora se tornam os novos conservadores e resistem
à idéia de superar o Estado, para usá-lo como aparato ideológico e repressivo a
serviço dos seus interesses de classe dominante.
Mas, é
possível ao indivíduo social agir sem interferir na liberdade de outro? Se
assim o fosse, a burguesia poderia ter abdicado das funções ideológicas e repressivas
do Estado, apostando exclusivamente numa suposta essência da liberdade humana
“natural”. A liberdade, antes de se
constituir em valor, é uma relação do ser humano com a natureza e a sociedade.
É, ao mesmo tempo, um desejo de autodeterminação do ser humano, mas sempre
situado e relativo a uma totalidade a que ele pertence. Como a liberdade do
indivíduo, ao contrário do que afirmam os liberais, sempre está imbricada com a
liberdade da coletividade, a condição humana em sociedade implica em limites, condicionamentos
e escolhas. Nesse aspecto, a possibilidade de poder optar, decidir e agir de
forma autônoma, passa a adquirir uma importância central para a liberdade.
É
precisamente em função do reconhecimento da existência de uma relação limitada
do indivíduo humano com a totalidade que surgem as diferentes concepções acerca
da liberdade. Para o absolutismo da Idade Média, Deus, como o criador de tudo,
ocupava o lugar desta totalidade e a liberdade humana consistiria em agir
conscientemente de acordo com a vontade divina. O aspecto revolucionário dos
liberais foi a negação da totalidade divina e a afirmação de um novo dogma em
seu lugar: a liberdade “natural”, decorrente da propriedade na sociedade. O que
é social, portanto, passa a ser naturalizado. As convenções sociais,
estabelecidas pela nova classe dominante em ascenção, passam a ser dogmatizadas
e a nova totalidade é “batizada” de livre mercado. Mas, o que haveria de natural nesta “liberdade”?
O ser
humano é parte da natureza e, na sua relação com o que é natural, vão se
efetivando modos de produção e relações sociais. Através do trabalho estão
criadas as condições de sociabilidade humana: os seres humanos interagem com o
mundo natural e entre si e, nesse processo, modificam a si mesmos. Diferentes dos
animais, portanto, os seres humanos não estão determinados e acabados. É na
relação com o meio e seus limites que o ser humano transforma e se transforma a
si mesmo, produzindo, ao longo da história, a cultura humana.
A cultura
humana, portanto, não tem nada de natural e é um processo inacabado. O ser
humano, consciente desse inacabamento, é potencialmente livre, pois o seu ser
está permeado da possibilidade qualitativa do vir-a-ser. Ao se apropriar das
condições que lhe permitem uma maior humanização é que o ser humano passa a
experienciar uma liberdade real e não meramente interior, de caráter subjetivo.
Cada progresso da cultura humana, nesse sentido, é um avanço rumo a uma maior
liberdade humana. A liberdade do
indivíduo, portanto, não consiste em estar independente da sociedade e do seu
desenvolvimento. Pelo contrário, ela somente se efetiva na possibilidade real
de desenvolver e satisfazer necessidades e capacidades humanas em sociedade.
O
trabalho é um processo concreto, de objetivação do mundo. O ser humano se
exterioriza na natureza que se transforma em seu “corpo inorgânico” e, ao
transformar a realidade objetiva, o indivíduo entra em contato com outros seres
humanos, construindo relações sociais geradoras de consciência: um processo de
subjetivação, portanto. Esse processo de exteriorização e internalização,
constituinte da liberdade humana, no entanto, é interrompido nas sociedades de
classes, uma vez que os proprietários dos meios de produção transformam o
sujeito trabalhador em objeto. O trabalho explorado, a serviço do capital, se
converte em trabalho abstrato, em meio produtor de mercadorias que se manifesta
ao trabalhador como estranho a ele mesmo. No
trabalho assalariado, o ser humano perde o controle de sua própria ação em
relação ao mundo e com os outros e, assim, o que seria o processo de
humanização se converte em dominação.
Não
basta, portanto, a liberdade subjetiva de fazer algo se o poder e as condições
objetivas da realidade impedem a ação. Isso os liberais revolucionários haviam
compreendido na sua época e deram um passo significativo ao se contraporem ao
poder absolutista da Igreja, propondo a liberdade, a igualdade e a fraternidade
como valores centrais para o convívio humano em sociedade. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista e do livre mercado,
porém, a crescente desigualdade impede o exercício da liberdade do indivíduo.
Formalmente, todos são reconhecidos como livres e iguais; na realidade, porém,
os trabalhadores estão em uma condição de desigualdade e subordinação em relação
aos proprietários dos meios de produção, dependendo de um salário que
corresponda à sua possibilidade de reprodução.
Por isso,
o que se entende por liberdade no capitalismo expressa um caráter ideológico de
classe. Enquanto para os proprietários dos meios de produção a liberdade
consiste na liberdade de explorar e dominar a classe trabalhadora, para
satisfazer seus interesses e necessidades, os trabalhadores só conquistam
determinadas liberdades através da sua constante luta organizada na sociedade.
A defesa da mera liberdade de “livre concorrência” nesse contexto significa
defender a liberdade dos capitalistas em continuar explorando seres humanos,
acabando com possíveis instrumentos regulativos que venham a restringir a
hegemonia e o enriquecimento privado da classe dominante. Para os
trabalhadores, a conquista da liberdade depende da emancipação do trabalho
alienado, através da socialização dos meios de produção e da subordinação da
economia aos interesses humanos, o que implica na superação do mercado e da
lógica da concorrência como elementos reguladores da vida em sociedade.
A conquista da liberdade real,
portanto, entra em confronto com as concepções do liberalismo, o qual reduz a
liberdade humana à luta desenfreada dos seres humanos entre si pela satisfação
de necessidades materiais. A possibilidade de superação do reducionismo liberal, que concebe o
ápice da liberdade na acomodação humana à lógica da produção e do consumo,
fundamenta a utopia de que o humanismo como projeto humano não foi concluído
com o advento do capitalismo. Uma
liberdade humana efetiva só é possível através da superação das relações
sociais geradoras de exploração, dominação e alienação, inerentes aos dogmas da
propriedade privada e do mercado. A liberdade constitui um valor
revolucionário e sua defesa consciente implica no desmascaramento das
tentativas de sua instrumentalização por parte da classe dominante na sociedade
capitalista. Ao contrário, ela ficará reduzida a uma mera ideologia – no
sentido de falsificação social e política.
Vocabulário:
Liberdade
negativa: corresponde à fruição do poder privado (a liberdade dos
modernos) ao passo que a liberdade positiva preocupa-se com o problema da
legitimidade da participação política. De acordo com o conceito
negativo, alguém é livre quando ninguém, um homem ou um grupo,
interfere em sua faculdade de agir.
Senso
comum: designação
científica para o conjunto de formulações (compreensões) que se estabelecem a
partir de conhecimentos não formais,
adquiridos a partir da experiência, da vivência.
01- Leia atentamente o texto,
circulando palavras e termos desconhecidos. Consulte o dicionário e solucione
suas dúvidas.
02- De acordo com o texto há
consenso sobre o que vem a ser liberdade? Explique.
03- Comente a
afirmativa de Voitaire: “Somos livres para fazer quando
temos o poder de fazer”
04- Responda
as questões formuladas pelo autor no primeiro parágrafo.
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